"Prometo Perder" de Pedro Chagas de Freitas
"Ontem fiz seis anos e os meus pais separaram-se. Não sei porque se separam os adultos quando há tantas coisas boas para nos unir.
A minha mãe é bonita como uma loja “Toys R Us”, um mundo inteiro para descobrir no que ela me olha. Quando chora – e ontem chorou tanto – as lágrimas sabem a sopa fria, odeio sopa mas seria capaz de comer todos os dias um prato bem fundo se a minha mãe parasse de chorar para sempre.
Há tantas coisas que parecem valer por tudo até ao momento em que chega algo que realmente vale por tudo.
Depois de o meu pai sair a casa ficou vazia, deu-me um beijo na testa, disse “porta-te bem, respeita a tua mãe”, e eu disse “está bem” mas só queria dizer “fica que nós precisamos de ti”. A minha mãe nesse momento não disse nada, olhou para a janela e sei que chorou sem que eu visse – os adultos choram com medo de chorar, como se temessem o que os separa dos animais. É nestas alturas que eu sei que vale a pena estudar, para saber estas coisas que aprendi na escola e perceber porque é que vale a pena ser humano.
Há-de haver sempre um humano sempre que houver um humano capaz de chorar.
A casa estranha, um silêncio malcheiroso espalhado pelo corredor, eu e a mamã sem saber se abraçar se fugir, o amor deve ser isto, percebo agora: uma sensação estranha de não saber se abraçar se fugir.
“Havemos de sobreviver”: quando a nossa mãe nos diz isto é certo que temos de a ajudar a sobreviver. Ninguém dá muito valor a sobreviver, as pessoas dizem que é normal, que tem de ser, que é a vida – mas não é: sobreviver é a coisa mais importante do mundo, valha-me a professora Carla, estudasse o mundo tanto como eu e metade dos problemas da Terra acabariam.
A ciência foi criada pelo Homem para ajudar o Homem, por mais que muitos Homens teimem em não o ver.
O sofá ainda tem as marcas dos pés do papá, aqueles pés grandes com aqueles sapatos pretos que ele engraxava sempre, todos os dias, antes de ir para o trabalho, a mamã dizia “não faças isso que me estragas o sofá”, ele pedia desculpa, sorria com aquele sorriso gigante (amo esse teu sorriso, meu pai, prometes que quando me vieres buscar aos fins de semana o trazes contigo para eu me lembrar de como era acordar com ele e com as cócegas que me faziam feliz?), e passado quatro ou cinco minutos já lá estavam outra vez os malvados dos pés, aposto que a mamã dava tudo para os ter outra vez ali, naquele sítio, e ele também, que eu bem sei que ainda gosta dela, os adultos separam-se quando há tanto ainda para os juntar – mas já tinha dito isto, não já?
Amanhã quando for para a escola sei que já serei filho de pais separados, como o Manel da Rua da Igreja, talvez lhe pergunte como é, talvez ele me diga que não é nada de especial, que até é fixe e tal, mas para já deixem-me fechar os olhos e imaginar que está tudo na mesma, assim a minha mãe pare de chorar aqui no quarto ao lado.
Que nunca se separe quem se ama: esta não aprendi quando falámos de ciências mas também não é preciso ser cientista nenhum para o formular. "
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in "Prometo Perder" Pedro Chagas de Freitas
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